Trovoada surpresa?
Isto existe?
Por Marcelo Visintainer Lopes
Instrutor de vela
Escola de Vela Oceano
escola de vela oceano - arte Kauli Lopes |
Comentários sobre
a “polêmica” trovoada do dia 14 de fevereiro (domingo) que deixou diversas lanchas e jets em apuros no norte da Ilha de Santa Catarina.
Encontrei
razão para escrever sobre este tema logo após ler e comentar uma postagem do FB
que dizia: “trovoada de verão pegou os barcos de surpresa”.
O
domingo amanheceu lindo e uma grande quantidade de embarcações saiu para curtir
o dia.
Seria
só mais um dia perfeito em Floripa?
Com
certeza não!
Os
mais antigos sabem que a combinação do calor abafado com a terra úmida da chuva
da noite anterior é sinal claro de trovoada e aquele dia não seria diferente.
No
meio da manhã a natureza já emitiu seus primeiros sinais: pequenos flocos de
algodão branco (nuvens Cumulus) começaram a se agrupar acima do Morro
Cambirela.
No
meu registro visual das 11h percebi que a célula dobrou de tamanho em meia hora.
A
profissão de instrutor de vela exige atenção constante nos Apps e sites, mas no
verão, em especial, minha atenção se volta para a “observação meteorológica”,
já que as trovoadas são fenômenos muito localizados, instáveis e de difícil
previsão.
Se
você começar a prestar a atenção nas “coisas do tempo” irá descobrir que as trovoadas
de verão não se formam de uma hora para a outra.
No
verão elas ocorrem sempre à tarde e por esta razão devemos evitar a navegação
neste período (quando as condições estiverem propícias para a ocorrência de
trovoadas).
Conforme
as horas vão passando a terra vai aquecendo o processo convectivo ganha força.
Normalmente
eu velejo bem tranquilo até 14h e depois trato de ficar perto de abrigos de
360° (ilhas contornáveis) ou me dirijo direto para a minha poita na marina em Santo
Antônio de Lisboa.
O
entorno do norte da ilha de Santa Catarina oferece diversas opções de abrigo
para tempestades de verão, mas quando estamos lá fora não temos para onde
correr.
Em uma
travessia oceânica a gente se prepara com bastante antecedência para o
enfrentamento.
A
preparação inclui vestir as roupas de tempo, fechar vigias, gaiutas e registros
principais, amarrar tudo que esteja solto no convés, prender tudo o que possa
cair no interior do barco e ligar o motor (se for o caso).
E as
velas?
Também
com antecedência, devemos deixá-las arriadas (ou enroladas) e muito bem
amarradas, já que não há como prever a energia que virá da tempestade.
Os ventos
fortes podem rasgar uma vela igual a um pedaço de papel...
Depois
que o vento da trovoada estabiliza podemos escolher o tamanho e o tipo de velas
que iremos utilizar, mas ainda assim cabe lembrar que muitas vezes ela perde energia
de um lado e entra de outro com mais energia ainda.
Nunca,
em momento algum, tente fazer previsões do tipo: “acho que ela vai passar longe”
ou “acho que ela não me alcança” ou “o vento está empurrando ela para o lado
oposto” ou “acho que ela já passou”.
É justamente
aí que mora o perigo!
Nem
os meteorologistas conseguem determinar com exatidão o que irá ocorrer.
As
células ganham e perdem energia ao passar por acidentes geográficos, ao passar
por locais com mais ou menos calor, por locais com mais ou menos umidade, enfim...
De
nada adianta dizer que a trovoada passou de forma leve pelo município X se
sabemos que ela poderá causar efeitos destrutivos mais ali na frente.
Se eu
pudesse dar um conselho eu diria o seguinte: prepare-se para o pior!
Se a
trovoada não entrar, melhor...
Comemore
mais tarde!
Procure
abrigo com antecedência e depois que tudo passar, continue a sua velejada
normalmente.
Se estou
velejando em um lugar onde o 4G funciona ou se tenho internet via satélite fica
bem mais fácil entender o comportamento e o deslocamento da célula.
O
Brasil possui uma rede integrada de detecção de descargas atmosféricas (RINDAT)
e esta costuma ser a minha primeira consulta.
O App
Windy (bolinha vermelha com a letra W branca) lançou a algum tempo uma função
que permite acompanhar o deslocamento e a energia das células. A função está
localizada no canto direito com o “símbolo de um raio”.
Uma
das razões que eu imagino ter sido o motivo para o descuido total do pessoal foi
que no dia anterior uma outra célula passou batida pelo continente. Provavelmente
as pessoas acreditaram que esta também passaria longe.
Antecipação
é uma palavra que deveria fazer parte do dia a dia de qualquer pessoa que
utiliza o mar como local de lazer ou trabalho.
Quando
saio para dar aula com previsão da trovoada eu costumo utilizar a estratégia de
rumar para o lado da trovoada (bem no início da sua formação).
Por
exemplo: se a trovoada está se formando no sul eu velejo para o sul.
A
razão disto é bem simples: quando ela entrar eu viro de popa e volto com ela.
Estar
a favor de uma trovoada é uma excelente estratégia e é uma técnica muito
utilizada na navegação.
Atenção!
Uma
trovoada pode perder força e outra poderá se formar logo em seguida e com
direção talvez, nem tão favorável.
Se
estivermos em mar aberto e com lazeira (espaço) suficiente para navegar em
todas as direções sem nenhum perigo à frente ok. Basta ir mudando o rumo de
maneira a ficar sempre de popa.
A
trovoada no dia 14 começou de S, parou e depois entrou de NW com menor
intensidade. Parou e depois entrou outra coisinha de ENE com menor intensidade
também...
Basta
deixar o vento levar você com ele; velas arriadas ou minúsculas (dependendo da
intensidade) e comemoração por estar no lugar certo na hora certa.
Mar
de popa e vento de popa são, na minha humilde opinião, a melhor solução para a
saúde do barco e da tripulação.
“Correr
com o tempo” é o termo utilizado para esta manobra.
Naquele
dia eu estava em aula e, em função do nível da turma (já não era marinheiros de
primeira viagem), rumei para o lado oposto ao da trovoada e informei a razão da
minha atitude: iremos para o lado contrário do que seria o correto.
Percebam
aquela formação no horizonte...
Quando
ela entrar, nosso retorno será contrário a ela, mas não se preocupem, pois manteremos
a atenção na formação e em tempo hábil retornaremos.
Aquela
aula tinha passara a ter o objetivo de exercitar o olhar para o desenvolvimento
das células e também colocar em prática todas as atitudes que devem ser tomadas
nas horas que antecedem uma trovoada.
Por
volta das 12h30 fundeamos na baia ao lado da Praia do Tinguá (Fazenda da
Armação).
Velejadores
não gostam muito de bagunça e som alto e por isto preferem a tranquilidade da
Fazenda.
O
Tinguá estava impraticável naquele dia. O som era tão estridente e misturado
que de longe soava como um vespeiro (zzzzzzzzzz).
Com
toda a certeza havia mais de 100 barcos fundeados ali.
Nosso
pitstop foi rápido. Quinze minutos foram suficientes para engolir o sanduiche.
O plano é sempre antecipar e não
atrasar!
O mais interessante foi perceber que
ao mesmo tempo que deixávamos a ancoragem no “modo lancha”, diversos barcos
continuavam chegando para “aproveitar o dia”.
Apenas um veleiro deixou a ancoragem com
a gente.
No caminho de volta relatei à turma o
que aconteceria com todas aquelas embarcações se a trovoada de fato entrasse.
O cenário que descrevi soava meio exagerado
(cena de filme de horror), mas eu conheço bem a situação geográfica do local e
também a velocidade de reação das pessoas que fazem o uso do álcool na hora do
churrasquinho...
Chegamos na marina por volta das 14h30
e ainda deu tempo para dar mais uns bordinhos ali em frente.
Às 15h amarramos na poita e preparamos
o barco para o vento forte.
Por volta das 15h30 o temporal entrou
com toda a força.
Eu e minha tripulação já estávamos em
terra firme e devidamente abrigados!
Passei toda a trovoada na área coberta
da churrasqueira da marina.
Granizos maiores do que bolas de ping
pong (pareciam meteoritos por causa da sua superfície irregular) começaram a
furar o telhado de fibrocimento da cobertura ao lado.
Eu, o Cid (dono da marina Santo Antônio)
e o marinheiro Fernando ficamos na proteção das robustas telhas de barro.
Só o que me vinha à cabeça naquele
momento tenso era o estrago que aquilo tudo deveria estar fazendo no Tinguá.
Pelo canal 16 do rádio VHF começaram a
chegar os primeiros pedidos de socorro.
Jets afundados, lanchas na praia,
barcos se batendo e muita corrente enroscada nos hélices.
Por sorte ninguém se feriu mais
gravemente e os prejuízos foram só materiais.
Muitas vezes o navegador é
surpreendido por uma trovoada por estar abrigado atrás de uma formação mais
alta, mas este não era o caso do Tinguá.
Sua face desprotegida é voltada para o
sul e de muito longe dava para enxergar “a coisa”.
Mesmo sob o abrigo de alguma montanha
o comandante tem a obrigação ficar atento aos sinais da natureza e também no
avanço das células através dos Apps.
Se a tempestade entrar antes de você
conseguir se abrigar, ligue o motor, suspenda o ferro e ancore o mais longe possível
da praia e de outros barcos.
Dê todo o cabo que você possuir (emende
cabos se for necessário) e mantenha o motor engrenado a vante.
Mantenha a rotação necessária para
manter a amarra da âncora com menos tensão do que se estivesse sem motor
naquela situação de vento forte.
O motor ligado e engrenado ajuda a
diminuir a força sobre a âncora, sobre a amarra, sobre os pontos de amarração
no barco e garante uma saída rápida, se for necessário.
Se tiver que sair às pressas por causa
de um perigo na popa ou mesmo na proa (um barco vindo para cima de você) não
hesite em abandonar sua âncora com amarra e tudo.
Não é à toa que devemos ter pelo menos
mais uma âncora (com amarra própria) a bordo.
Eu tenho três âncoras com pesos
diversos, inclusive uma super dimensionada para o barco.
Conheço gente que leva cinco kits
completos.
Você navega com âncoras reserva e está
sempre atento aos sinais da natureza?
Bons ventos!