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comandante: Marcelo Visintainer Lopes

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Quem veleja tem história #1

  

Veleiro Escola Oceano (Delta 32' à epoca)


Travessias x tripulação

 

Por Marcelo Visintainer Lopes

Instrutor de Vela       

Escola de Vela Oceano

 

Comandantes estão acostumados a lidar com situações desafiadoras por longos períodos e por isto acabam desenvolvendo um modo preventivo de agir.

Sua experiência os ajuda a “ver” o perigo antes dele se aproximar.

São conservadores e seu instinto de sobrevivência é apurado.

Calculam o risco e a consequência antes de pensar no benefício.

Resiliência é a sua principal característica e por isto possui grande facilidade para mudar de rumo e colocar o barco em uma condição mais favorável em relação às condições do mar.

A arte de combinar o melhor equilíbrio do barco, o menor desgaste do equipamento e o conforto da tripulação é uma boa indicação da quantidade de milhas que ele já percorreu.

Seu maior desafio é encontrar solução para os problemas comportamentais dos membros da sua tripulação.

Reparar uma vela rasgada é bem mais simples do que administrar “conflitos” e este será o tema de hoje.

No ano de 2006 contratei dois amigos velejadores da Ilha da Tatuoca – PE para transladar um Delta 32’ de Recife até Ilhabela.

Os dois tinham as características marinheiras que eu precisava e também a educação e a simpatia necessárias para um período mais longo de confinamento.

A notícia da travessia se espalhou rápido e um terceiro tripulante pediu para embarcar.

Um cara a mais para tocar o leme de um veleiro sem piloto automático seria muito bem-vindo.

Ele era amigo e tinha as mesmas características dos demais, porém não era velejador e sua experiência com o mar vinha da pesca artesanal.

Faltando alguns dias para a partida, comecei a ter “pressentimentos estranhos” em relação a ele e achei que seria melhor convencê-lo a desistir.

Eu não tinha nada de concreto para dizer a ele. Eram apenas pressentimentos que não o convenciam.

Até o dia do embarque e, mesmo após o embarque eu continuava tentando...

Saímos do Cabanga no final da tarde e fundeamos em frente ao Pernambuco Iate Clube (dentro da barra) para o jantar.

Eu estava bastante desconfortável com aquele sentimento e até o meu estômago dava sinais...

Ancorei a menos de 50 metros do PIC e não hesitei em fazer a última tentativa, já em tom de voz mais grave: rapaz ainda dá tempo para desembarcar ali naquele pier!

Você pega um ônibus e volta para casa...

Eu já havia explicado e ele que a nossa primeira parada seria em Búzios e que o trecho de mil milhas poderia durar de 6 a 8 dias.

Ele também sabia que o barco não tinha motor de centro. Contávamos somente com um 15Hp de popa para eventuais calmarias.

Imune aos meus argumentos, parecia estar super convicto da sua decisão.

Ok. Suspendemos o ferro logo após o jantar e começamos a velejar.

Logo na saída da barra pudemos contemplar a beleza das luzes da Praia da Boa Viagem e à medida que nos afastamos da costa e como era de se esperar, as luzes foram sumindo.

Estava tudo ótimo até o terceiro tripulante (o mesmo dos pressentimentos) perceber que as luzes haviam desaparecido.

Ele começou a gritar: a luz, a luz, onde tá a luz?

Ele ficou completamente desorientado e muito perturbado emocionalmente.

Quando percebi sua angústia liguei a luz de cortesia para tentar acalmá-lo, mas de nada adiantou.

Liguei todas as luzes da cabine e nada...

Tentamos confortá-lo de todas as formas, mas o descontrole tomou conta, fazendo-o sofrer intensamente de uma fobia que ainda não conseguíamos identificar.

Minha esperança era ele voltar ao normal ao ver o dia amanhecer.

Logo que amanheceu percebemos que o problema não era a falta de luz e sim a falta de terra.

Já tínhamos o laudo psiquiátrico: fobia de terra...

Eu nem sabia que isso existia!

Fazer o que naquela situação com um tripulante chorando dia e noite?

A próxima terra a ser avistada seria no Arquipélago de Abrolhos que estava a uns cinco dias de viagem.

Como só chorava e balbuciava, eu tinha receio dele tentar fazer alguma bobagem e por isto nunca o deixávamos sozinho fora da cabine.

A cada dia que passava o ambiente ficava mais tenso e com cara de filme de suspense.

No final da tarde do segundo ou terceiro dia (não me recordo) o vento começou a aumentar muito rapidamente e as ondas também.

Baixamos primeiro a vela grande, que dava sinais de que iria explodir na altura da tala do tope e em seguida a genoa.

Com as velas bem amarradas e o leme também, entramos para dentro da cabine e tentamos descansar.

O barco derivava ao sabor das ondas e do vento e não havia nada melhor para fazer naquele momento.

O vento era tão forte que qualquer tentativa de colocar uma vela de tempestade poderia causar um acidente grave.

Seria melhor derivar sem nenhum prejuízo (estávamos a mais de 200km da costa) do que correr o risco de perder um tripulante ou desmastrear o barco.

A noite foi de mar enorme e o vento passava dos 40kt.

Ao amanhecer o vento baixou e conseguimos colocar a genoa.

A vela grande havia rasgado e subiria mais tarde, após os reparos.

Já próximos de Abrolhos, mas ainda fora do alcance visual, consegui contato com o pessoal do IBAMA e os convenci a desembarcar o tripulante.

Arrumaram uma carona com um barco de mergulho e a alegria tomou conta da tripulação, exceto do tripulante que ainda estava em crise.

Quando entramos na distância visual do arquipélago o jovem parou de chorar e começou a rir como uma criança.

A fobia de falta visual de terra havia passado!

Fundeamos na ilha principal e em seguida o bote do resgate chegou para buscá-lo.

O bote chegou, nos despedimos e ele partiu.

No decorrer daquela manhã as nuvens começaram a se dissipar e o sol, que não aparecia há muitos dias, brilhou todos os dias até o final da viagem.

A nuvem escura finalmente havia saído de cima de nós!

O astral mudou da água para o vinho e a alegria tomou conta do barco.

Os ventos de popa nos carregaram nos braços até Búzios e depois de um descanso rumamos para Ilhabela, onde realizamos a entrega do barco.


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